Mudar é preciso

Indico-lhes esse texto que pra mim representa boa parte da minha experiência pessoal: o rompimento com o deus sistematizado, ideológico, dogmático e o apaixonamento com o Deus que transcende, que tal qual horizonte está para além das nossas demarcações. Espero que gostem, eu, porém atesto que li e me identifiquei! Vamos lá…


Estou em processo. Permaneço obra inacabada. Não passo de frase que termina em reticências. Quem sabe, um quadro sem os retoques finais. Para continuar assim, vou me reinventando. Dinamito algumas pedras que me serviram de apoio – meus pressupostos. Sem pressa, cavo novos alicerces. Minha catedral, tabernáculo, ou santuário (eu mesmo) ergue-se com outros fundamentos.

Como meu prazo de validade se expira, acelero as mudanças. Identifico uma, e ela tem a ver com o que me ensinaram sobre Deus. Não tento emoldurar o mistério. Deus transbordou dos meus catecismos. Dei as costas ao Deus imaginado pelos gregos e depois sistematizado por teólogos.

Já faz alguns anos, escrevi um texto confessando cansaço. Na verdade, eu nem estava assim tão fadigado. O texto não passava de um grito; revelava um profundo anseio por mudar de estrada. Eu percebia que vários fios estavam soltos na minha confissão de fé. Apesar de relutar, eu não podia negar as demandas brutais da história. A miséria, com todo o sofrimento, me obrigou a reescrever meus discursos. Pensar sobre a transcendência não podia permanecer um diletantismo.

Li autores diversos. Criei coragem. Fiz perguntas complicadas. Obedeci o conselho de Jesus: calculei os riscos e tomei, pelo menos no meu juízo, o caminho menos trilhado.

Minha transformação não foi cumulativa, mas traumática. Converti teologia em teopoesia. Passei a preferir o ritmo da poesia à exatidão do dogma. Esforcei-me para garimpar esperança na verdade sutil, aquela que se esconde nas entrelinhas. Demorei, mas passei a reverenciar a força do poeta.

Alguém perguntou se era possível sentir beleza em uma realidade que fervilha “em larvas, numa terra prenhe de cadáveres”. Digo sim. Mesmo nos cenários mais horrorosos sobram réstias de uma luminosidade deslumbrante. Insisto em me  manter crente por intuir que a sombra do divino é bonita. Passei a ler as Escrituras mais como obra poética do que como crônica jornalística. Sem pretensão de codificar o divino, posso ser tocado pelo imarcescível. Nas frestas de metáforas, relatos míticos e parábolas, sei que conseguirei ouvir o inaudível.

Se Deus fala, suas palavras brotam como água fresca numa caatinga seca. Ele é gentil. A feiúra só se deixa intimidar pela gentileza. Argumentos não rivalizam os coléricos. Desde o fiat primordial, o amor explodiu o cosmo, por isso luzes e cores chegam de longe, das fronteiras remotas do universo.

Deus parece ainda crer na gente. Acho que ele anseia que nos tornemos aquarela, diapasão de sons inimagináveis, sinfonias deslumbrantes. E que mesmo em meio à crueldade, guardemos o potencial de ser espetaculares. A tarefa de não apagar o lume que nos habita é por demais sagrada.

O mal nos ronda, todavia. A guerra continua a seduzir e a perversidade se multiplica – por toda parte deparamos com rostos crispados de ódio. Inocentes padecem. O salário mal remunerado faz do suor, um clamor ao céu. Mulheres ainda são violentadas e crianças, traficadas. Não faltam cínicos. Ingênuos, manipulados, perpetuam estruturas demoníacas. A pergunta não cala: Por quê, por quê?

Contra a corrente, artistas se esforçam para resistir o avanço da antivida.

Resta animar médicos, violinistas, filósofas, sacerdotes, cantores de churrascaria, psicólogas, para que se tornem diques contra a injustiça. Que não prevaleça a sanha do traficante, do mercador internacional de armas ou do explorador da mão de obra infantil.

Acredito que os mansos herdarão o porvir. Creio que os grilhões do ódio não resistirão ao dobrar dos sinos da boa vontade. Os que amam a justiça serão sempre um farol no alto da colina.

Se couber metáfora, a bondade será fermento, a mansidão, ácido e a integridade, aríete. Só assim implodimos estruturas malignizadas. Prometamos jamais usar as armas da intolerância. Recorramos ao Sermão do Monte para fazer ruir os castelos da maldade.

Ofereçamos a mão aos que se voluntariam como agentes da vida. Olhemos juntos para o horizonte mais distante e proclamemos: não haverá sossego enquanto os primeiros fios da aurora não se tornarem dia perfeito.

Preservo o fôlego. Preciso me manter sereno. Se convivo com um mundo que banaliza a morte, devo continuar a acreditar no perfume do amor, na densidade da mansidão e na energia da solidariedade. Embora acossado pela decepção, devo sempre trazer à memória que um soldado romano se fez servo de um escravo, que uma mãe – mesmo tratada como “cachorrinha” – não desistiu da cura da filha, que dois cegos gritaram na direção do filho de Davi e enxergaram e que um ladrão prenunciou o paraíso no derradeiro minuto de vida.

Mais de sete mil profetas não se venderam. Por que então não me rodear de gente, cujo preço ninguém pode pagar? Inspirado no Nazareno, anseio aprender mais sobre a força da fragilidade, nunca da coerção. Ao me manter maleável sob o martelo da vida, não empaco. Ainda tenho muito o que mudar.

Soli Deo Gloria

Ricardo Gondim
www.ricardogondim.com.br
ricardogondim

2 comentários sobre “Mudar é preciso

  1. Que excelente texto!!! Me identifiquei com muitas coisas; È um relato verdadeiro, com palavras muito bem colocadas e que se encaixam bastante no processo que estou vivendo. O texto chegou como um bálsamo animador para minha caminhada de Fé; Pois constantemente fico diante de muitos dilemas, e escolhas.
    Muitas coisas que me fazem sentir incompreendida e diferente do que a maioria das pessoas pensa e acha que está certo. Bom saber, que não estamos sós…
    Rodrigo! Muito obrigada mais uma vez por este espaço e por compartilhar coisas tão proveitosas.

    1. Eu que agradeço o comentário, a visita constante, e realmente, esse texto representa, e muito, o que penso, minha experiência pessoal e as transformações que tem ocorrido em mim nesses últimos 5 anos. Abraço

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