Sacode as vagas de teu dorso imenso,
Oh! profundo oceano! Ergue-as altivas
Com seus frígios barretes! Em vão tentam
Lutar contigo temerárias frotas,
Traçar-te raias a vaidade humana!
Tu és eterno e vasto como o espaço,
Livre como a vontade onipotente.
Régio manto do globo! povo infindo
De soberbos Titães! gênio da força,
Salve três vezes!… Das espáduas amplas
Derribas todo o jugo que te oprime,
Tragas gigantes de carvalho e cedro,
E a fronte erguendo majestosa e bela
Diademas de pérolas atiras
Às estrelas do céu, e ao mundo cospes
A férvida saliva em desafio!
Quantos impérios celebrados, fortes
Não floresceram de teu trono às bases
Sublime potestade! e onde estão eles?
O que é feito de Roma, Assíria e Grécia,
Cartago, a valorosa? As vagas tuas
Lambiam-lhes os muros, quer nos tempos
De paz e de bonança, quer na quadra
Em que chuvas de setas se cruzavam
À face torva das hostis falanges!
Tudo esb’roou-se, se desfez em cinzas,
Sumiu-se como os traços que o romeiro
Deixa de Núbia na revolta areia!
Só tu, oh! mar, sem termos, imutável
Como o quadrante lúgubre do tempo,
Ruges, palpitas sem grilhões nem peias!
Nunca na face desse azul sombrio,
Onde tranqüilas, ao chorar das brisas,
Poesias do céu, flores do éter,
As estrelas se miram namoradas…
Nunca o fogo e a lava, a guerra e a morte,
A armada dos tiranos há deixado
Um vestígio sequer de seus destroços!
Tal como à tarde do primeiro dia
Que ao orbe clareou, hoje te ostentas
Na tua majestade horrenda e bela!
Espelho glorioso onde entre fogos
Se mostra onipotente, nas tormentas
A face do Senhor! Monstro sublime
Cujas garras de ferro o globo abraçam…
Até que um dia, quem o sabe? exausto
Lance o último alento! ah! no teu seio
Talvez tremendo espírito se agite,
Misto sombrio de paixões sem freios,
Cuja expressão vislumbra-te no rosto,
Ora hediondo de compressos músculos,
Ora suave como o louro infante
Sobre o seio materno, ora cruento
Gotejando suor, escuma e raiva!
Níobe eterna! de teu ventre túmido
Os monstros dos abismos rebentaram,
Em cujo dorso de argentadas conchas
Os raios das estrelas resvalavam:
De teu lodo fecundo, inextinguível,
Brotaram continentes cujas grimpas
Iam bater na abóbada cerúlea;
Teus paços de coral e de esmeraldas
Encerravam princesas vaporosas,
Louras ondinas, encantados gênios,
Soberbas divindades! Entretanto
Viste tudo cair! riscada a Atlântida
Da face do universo, os brônzeos deuses
Desterrados pra sempre, e só restou-te
Uma voz gemedora que chorava:
– Já não vive o Deus Pã! oh! Pã é morto!
Oceano sem fundo! vagas túmidas
Abismo de mistério, ah! desde a infância
Preso na teia da atração divina
Eu vos busquei sedento! sobre as praias,
Curvas como os alfanjes dos eunucos,
Eu me perdia nos dourados dias
Da santa primavera, ouvindo os brados
Dos marinhos corcéis, molhando as plantas
Na gaze salitrosa que envolvia
A areia cintilante! após mais tarde
Sentava-me no cimo dos rochedos,
Suspirando de amor aos verdes olhos,
Aos moles braços que do salso leito
Erguiam-se tão meigos e adorados!…
Amo-te ainda, oh! mar! amo-te muito,
Mas não tranqüilo umedecendo a proa
Da gôndola lasciva, nem chorando
às carícias da lua! Amo-te horrível,
Arrogante e soberbo, repelindo
Os furacões que roçam-te nas crinas,
Quebrando a asa de fogo que das nuvens
Procura te domar, batendo a terra
Com teus flancos robustos, levantando
Triunfante e feroz no tredo espaço
A cabeça estrelada de ardentias!
Amo-te assim, oh! mar, porque minh’alma
Vê-te imenso e potente, desdenhoso
Rindo às quimeras da cobiça humana!
Amo-te assim! ditoso no teu seio
Zombo do mundo que meu ser esmaga,
Sou livre como as vagas que me cercam
E só a tempestade e a Deus respeito.
Salve, oceano onipotente e eterno!
Santo espelho de Deus, três vezes salve!
Fagundes Varella
1841-1875